Liberdade em duas rodas
“Ela tem feito mais para emancipar as mulheres do que qualquer outra coisa no mundo”. Esta frase da líder feminista americana Susan Anthony (1820-1906) parece se referir à pílula anticoncepcional ou a alguma outra coisa que possa ser facilmente identificada com a emancipação feminina. Mas ela trata da bicicleta. Na virada do século XX, esse veículo sobre duas rodas teve um papel mais importante do que se costuma crer na luta pelos direitos das mulheres, dando a elas autonomia para irem sozinhas de um lugar a outro e ajudando a enterrar as antigas roupas que limitavam seus movimentos.
Quando as primeiras mulheres começaram a pedalar, nem todos aprovaram o novo hábito. Alguns médicos achavam que essa atividade lhes faria mal. Para o médico francês Phillipe Tissié (1852-1935), poderia causar até abortos ou esterilidade feminina. Felizmente, houve na medicina quem pensasse diferente, como o também francês Ludovic O’Followell, que atestava: o ciclismo contribuía para a saúde e não era perigoso para a maternidade.
Ignorando os alertas médicos contra o ciclismo, francesas e americanas foram as primeiras a se interessar pela atividade, ainda no final do século XIX. As bicicletas da época já tinham um formato mais parecido com a atual e não lembravam tanto seus antecessores, os velocípedes, criados em 1863 pelos irmãos franceses Pierre (1813-1883) e Ernest Michaux (1841-?).
As feministas logo aderiram à novidade. “A mulher está pedalando em direção ao sufrágio”, disse a americana Elizabeth Staton (1815-1902), citando outro direito ainda por conquistar na época. A bicicleta é “igualitária e niveladora” e ajuda a “libertar o nosso sexo”, afirmou a presidente da Liga Francesa de Direitos da Mulher, Maria Pognon (1844-1925). Entre os americanos, o ciclismo ficou ligado à figura da New Woman, que contestava os tradicionais papéis femininos envolvendo-se com movimentos reivindicatórios, principalmente pelo direito de voto.
Algumas pioneiras tentaram fazer carreira no ciclismo esportivo, mas essas iniciativas foram reprimidas e a organização de competições femininas foi proibida. Relacionando força, agilidade e velocidade, esse esporte deveria ser privilégio masculino. Para se manterem ativas e continuarem reivindicando a participação em campeonatos, as mulheres se envolveram, então, em desafios de distância e velocidade.
Em 1894, por exemplo, a americana Annie Kopchovsky (1870–1947) decidiu aceitar o desafio, lançado por dois clubes masculinos de Boston, de dar a volta ao mundo em cima de uma bicicleta. Adotou o sobrenome de Londonderry, em função de uma marca de água mineral que a patrocinava, e escandalizou a sociedade da época ao abandonar o tradicional papel de esposa e mãe para provar que podia fazer o mesmo que um homem. Ao voltar aos Estados Unidos um ano e três meses depois, foi saudada enfaticamente por The New York Times como a responsável pela mais incrível viagem realizada por uma mulher.
No Brasil, onde as primeiras bicicletas começaram a ser importadas em escala comercial na década de 1890, também são poucos os registros de participação feminina em competições de ciclismo. Um exemplo são as provas de duplas mistas realizadas em 1897 no Frontão Velocipédico Fluminense, localizado na Rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro. Vistas com estranheza, não passaram de experiências isoladas.
As mulheres só costumavam se envolver mesmo como espectadoras. Eram exaltadas por “embelezarem” o espetáculo ou convocadas para “enfeitar” os velódromos em dias de provas especiais, como já faziam nas provas de turfe e remo. Mas no dia a dia era diferente. Nos momentos de lazer, americanas e europeias já davam suas pedaladas com mais frequência. Elas se valiam das bicicletas para se locomover melhor, aumentar sua presença no espaço público, ir contra as normas sociais ou simplesmente se divertir.
No Brasil, onde a influência francesa era muito forte na transição para o século XX, e principalmente nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, também havia mulheres circulando sobre duas rodas com os mesmos objetivos das estrangeiras, ainda que em menor número. Afinal, o preço da bicicleta era bastante alto no país, o que restringia sua aquisição aos mais ricos. Era clara a diferença entre os que podiam comprá-la e os que somente podiam alugá-la ou pegá-la emprestada.
A edição da revista paulistana A Bicycleta: Semanario Cyclistico Illustrado de 12 de junho de 1896 dá uma mostra do que se esperava de uma ciclista mulher – nunca deveria ferir as condições de fragilidade, elegância e delicadeza que lhe eram atribuídas – e de um homem:
Entre as mudanças nos hábitos femininos causados pelo ciclismo está a distensão nas roupas, como o fim do uso do incômodo espartilho, peça que dificultava ou mesmo impossibilitava o ato de pedalar. O doutor O’Followell, o mesmo que defendeu o uso das bicicletas pelas “honestas”, condenava o espartilho com veemência, pois agredia a anatomia feminina, trazendo prejuízos à saúde. À medida que andar sobre duas rodas foi se tornando mais comum, as mulheres também passaram a usar roupas mais curtas e justas.
Em matéria na edição de 2 de setembro de 1900 do Jornal do Brasil, a correspondente na França, Marguerite Saint Gene, mostrava, em cinco ilustrações detalhadas, a grande novidade que eram as roupas usadas pelas parisienses para pedalar. A revista A Bicycleta também tinha uma seção chamada “Às Cyclistas”, com dicas de modelitos femininos. Apesar disso, abandonar os espartilhos e as roupas pesadas ainda era uma realidade distante para as brasileiras, e mesmo para as francesas, algo que só foi mesmo ocorrendo no decorrer do século.
Na imprensa também se nota como os homens ficavam apreensivos com a novidade de ver mulheres sobre duas rodas. Em suas “Notas Semanais” publicadas no Jornal do Brasil de 21 de janeiro de 1900, o cartunista Bambino retrata, em charge intitulada “Consequências naturais”, algumas ciclistas pedalando pela cidade (com roupas menos elegantes do que as usadas pelas parisienses de Marguerite Saint Gene), enquanto dois cavalheiros bem-vestidos olham com expressão jocosa.
Apesar da desconfiança masculina, o envolvimento das mulheres com o ciclismo foi irreversível, um retrato dos avanços da época e, ao mesmo tempo, um argumento para ampliar a presença feminina no espaço público. Se a prática foi resultado de um processo de reivindicação, também foi estimulada por um mercado de entretenimento que começava a surgir numa sociedade marcada pelas ideias de espetáculo e consumo. Foi um ponto de partida para que, anos mais tarde, elas conquistassem também seu espaço como atletas nas competições esportivas.
Victor Andrade de Melo é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (Apicuri/Faperj, 2009); André Schetino é professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e autor do livro Pedalando na modernidade (Apicuri, 2008). Ambos são autores de “A bicicleta, o ciclismo e as mulheres na transição dos séculos XIX e XX”, publicado em Estudos Feministas, v. 17, nº 1 (pp.111-134), 2009.
Quando as primeiras mulheres começaram a pedalar, nem todos aprovaram o novo hábito. Alguns médicos achavam que essa atividade lhes faria mal. Para o médico francês Phillipe Tissié (1852-1935), poderia causar até abortos ou esterilidade feminina. Felizmente, houve na medicina quem pensasse diferente, como o também francês Ludovic O’Followell, que atestava: o ciclismo contribuía para a saúde e não era perigoso para a maternidade.
Ignorando os alertas médicos contra o ciclismo, francesas e americanas foram as primeiras a se interessar pela atividade, ainda no final do século XIX. As bicicletas da época já tinham um formato mais parecido com a atual e não lembravam tanto seus antecessores, os velocípedes, criados em 1863 pelos irmãos franceses Pierre (1813-1883) e Ernest Michaux (1841-?).
As feministas logo aderiram à novidade. “A mulher está pedalando em direção ao sufrágio”, disse a americana Elizabeth Staton (1815-1902), citando outro direito ainda por conquistar na época. A bicicleta é “igualitária e niveladora” e ajuda a “libertar o nosso sexo”, afirmou a presidente da Liga Francesa de Direitos da Mulher, Maria Pognon (1844-1925). Entre os americanos, o ciclismo ficou ligado à figura da New Woman, que contestava os tradicionais papéis femininos envolvendo-se com movimentos reivindicatórios, principalmente pelo direito de voto.
Algumas pioneiras tentaram fazer carreira no ciclismo esportivo, mas essas iniciativas foram reprimidas e a organização de competições femininas foi proibida. Relacionando força, agilidade e velocidade, esse esporte deveria ser privilégio masculino. Para se manterem ativas e continuarem reivindicando a participação em campeonatos, as mulheres se envolveram, então, em desafios de distância e velocidade.
Em 1894, por exemplo, a americana Annie Kopchovsky (1870–1947) decidiu aceitar o desafio, lançado por dois clubes masculinos de Boston, de dar a volta ao mundo em cima de uma bicicleta. Adotou o sobrenome de Londonderry, em função de uma marca de água mineral que a patrocinava, e escandalizou a sociedade da época ao abandonar o tradicional papel de esposa e mãe para provar que podia fazer o mesmo que um homem. Ao voltar aos Estados Unidos um ano e três meses depois, foi saudada enfaticamente por The New York Times como a responsável pela mais incrível viagem realizada por uma mulher.
No Brasil, onde as primeiras bicicletas começaram a ser importadas em escala comercial na década de 1890, também são poucos os registros de participação feminina em competições de ciclismo. Um exemplo são as provas de duplas mistas realizadas em 1897 no Frontão Velocipédico Fluminense, localizado na Rua do Lavradio, centro do Rio de Janeiro. Vistas com estranheza, não passaram de experiências isoladas.
As mulheres só costumavam se envolver mesmo como espectadoras. Eram exaltadas por “embelezarem” o espetáculo ou convocadas para “enfeitar” os velódromos em dias de provas especiais, como já faziam nas provas de turfe e remo. Mas no dia a dia era diferente. Nos momentos de lazer, americanas e europeias já davam suas pedaladas com mais frequência. Elas se valiam das bicicletas para se locomover melhor, aumentar sua presença no espaço público, ir contra as normas sociais ou simplesmente se divertir.
No Brasil, onde a influência francesa era muito forte na transição para o século XX, e principalmente nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, também havia mulheres circulando sobre duas rodas com os mesmos objetivos das estrangeiras, ainda que em menor número. Afinal, o preço da bicicleta era bastante alto no país, o que restringia sua aquisição aos mais ricos. Era clara a diferença entre os que podiam comprá-la e os que somente podiam alugá-la ou pegá-la emprestada.
A edição da revista paulistana A Bicycleta: Semanario Cyclistico Illustrado de 12 de junho de 1896 dá uma mostra do que se esperava de uma ciclista mulher – nunca deveria ferir as condições de fragilidade, elegância e delicadeza que lhe eram atribuídas – e de um homem:
Entre as mudanças nos hábitos femininos causados pelo ciclismo está a distensão nas roupas, como o fim do uso do incômodo espartilho, peça que dificultava ou mesmo impossibilitava o ato de pedalar. O doutor O’Followell, o mesmo que defendeu o uso das bicicletas pelas “honestas”, condenava o espartilho com veemência, pois agredia a anatomia feminina, trazendo prejuízos à saúde. À medida que andar sobre duas rodas foi se tornando mais comum, as mulheres também passaram a usar roupas mais curtas e justas.
Em matéria na edição de 2 de setembro de 1900 do Jornal do Brasil, a correspondente na França, Marguerite Saint Gene, mostrava, em cinco ilustrações detalhadas, a grande novidade que eram as roupas usadas pelas parisienses para pedalar. A revista A Bicycleta também tinha uma seção chamada “Às Cyclistas”, com dicas de modelitos femininos. Apesar disso, abandonar os espartilhos e as roupas pesadas ainda era uma realidade distante para as brasileiras, e mesmo para as francesas, algo que só foi mesmo ocorrendo no decorrer do século.
Na imprensa também se nota como os homens ficavam apreensivos com a novidade de ver mulheres sobre duas rodas. Em suas “Notas Semanais” publicadas no Jornal do Brasil de 21 de janeiro de 1900, o cartunista Bambino retrata, em charge intitulada “Consequências naturais”, algumas ciclistas pedalando pela cidade (com roupas menos elegantes do que as usadas pelas parisienses de Marguerite Saint Gene), enquanto dois cavalheiros bem-vestidos olham com expressão jocosa.
Apesar da desconfiança masculina, o envolvimento das mulheres com o ciclismo foi irreversível, um retrato dos avanços da época e, ao mesmo tempo, um argumento para ampliar a presença feminina no espaço público. Se a prática foi resultado de um processo de reivindicação, também foi estimulada por um mercado de entretenimento que começava a surgir numa sociedade marcada pelas ideias de espetáculo e consumo. Foi um ponto de partida para que, anos mais tarde, elas conquistassem também seu espaço como atletas nas competições esportivas.
Victor Andrade de Melo é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (Apicuri/Faperj, 2009); André Schetino é professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e autor do livro Pedalando na modernidade (Apicuri, 2008). Ambos são autores de “A bicicleta, o ciclismo e as mulheres na transição dos séculos XIX e XX”, publicado em Estudos Feministas, v. 17, nº 1 (pp.111-134), 2009.
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